A POLÊMICA DE UM PROJETO NECESSÁRIO
O governo pretende, seguindo a experiência de Reino Unido, França e Itália, além de outros países, repatriar capitais saídos do território nacional sem a respectiva declaração à Receita Federal, principalmente em virtude do confisco das contas bancárias no governo Collor e às vésperas da eleição do presidente Lula, em 2002, quando se temia que o Brasil se transformasse num regime economicamente falido como o de Cuba.
À época, a desastrada política econômica da Venezuela, que pretendeu seguir o mesmo modelo, ainda estava no início de sua derrocada. É de se lembrar que Hugo Chávez conseguiu retardá-la, mas a notória incompetência e falta de carisma do sindicalista Nicolás Maduro terminou por arrasá-la.
O Brasil paga hoje o preço de um brutal inchaço da máquina pública para a acomodação de todos os amigos do rei, gerador de uma economia em frangalhos, uma alta inflação, uma brutal desvalorização do real, um elevado nível de desemprego, um baixíssimo PIB, assim como o desventrar contínuo de uma corrupção contaminadora de quase todas as instâncias administrativas.
Esse quadro tornou-se dramático nos últimos 13 anos, em que imperou a absoluta insensatez política e econômica.
Pensa agora o governo -e pensa corretamente- em repatriar aqueles capitais, num momento em que a dívida brasileira caminha para 70% do PIB, encostando no nível dos mais de US$ 360 bilhões de nossas reservas, com baixa punição aos que remeteram recursos para fora. O projeto de que se tem notícia, todavia, merece críticas.
A primeira grande falha é vincular o retorno destes capitais a um fundo a ser criado para compensar os Estados que perderão receita no eventual fim da guerra fiscal do ICMS, após pagamento de 17,5% do imposto de renda e 17,5% de multa de “regularização”.
Ora, a repatriação será um ato que se esgotará no retorno do dinheiro enviado para fora, enquanto que o fundo para compensar os Estados será permanente, até que as perdas sejam eliminadas. Algo que se arrastará por anos será mantido por um fundo que se formará com um prazo certo de retorno, uma única vez.
Por outro lado, reduz-se o Imposto de Renda, que deveria ser pago à base de 27,5%, para 17,5% e cria-se uma multa de regularização cuja natureza é indefinida: é tributária, administrativa, penal ou extrafiscal?
Em artigo publicado no “O Estado de S. Paulo”, Everardo Maciel, dos maiores especialistas em direito tributário das Américas aponta sete impropriedades do projeto (“A polêmica repatriação de capitais”).
Parece-me que a solução ideal seria outra. Pagamento integral do Imposto de Renda (27,5%), com a multa moratória prevista na legislação, no caso de denúncia espontânea, como faria qualquer pessoa que tivesse que pagar o imposto em atraso, antes de fiscalização. Eliminada estaria qualquer outra punição.
Não haveria nenhum privilégio para quem enviou dinheiro para fora (imposto mais multa moratória) e a própria extinção da punibilidade, que já é prevista na legislação aplicável, estender-se-ia a outras eventuais infrações decorrentes da remessa irregular.
À evidência, dinheiro resultante de narcotráfico, corrupção ou terrorismo não seria anistiado criminalmente, nem gozaria da possibilidade de repatriação, pois deveria ser inteiramente confiscado.
Parece-me uma solução mais justa, que poderia fortalecer o conturbado caixa do governo, enquanto não resolver enxugar a esclerosada máquina, libertando-se dos mais de 100 mil “amigos do rei” (comissionados) que incham as estruturas burocráticas da União.
Ives Gandra da Silva Martins, advogado, é professor emérito da Universidade Mackenzie, da Escola de Comando e Estado-Maior do Exército e da Escola Superior de Guerra
Artigo publicado originalmente no jornal Folha de S. Paulo.
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